Valor Econômico: “Haddad diz que é um ‘ativo do PT’ para o futuro”
Haddad diz ser um ativo do PT e se coloca à disposição da centro-esquerda
Publicado em Valor Econômico, no dia 25 de novembro de 2019 | Por Malu Delgado*
Fernando Haddad se reconhece, hoje, como “um ativo do PT”, após ter sido derrotado em 2018 por Jair Bolsonaro. “Tive um bom desempenho eleitoral. Na política isso não passa despercebido. Mas há outras personalidades emergindo.” Em entrevista ao Valor, Haddad descartou categoricamente a possibilidade de disputar a Prefeitura de São Paulo em 2020 e deixou claro que seu objetivo é formular um projeto consistente para a centro-esquerda apresentar em 2022. Com esse discurso, em que se coloca “à disposição de um campo político” no futuro, permanece como presidenciável, ainda que com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de volta à ativa.
O retorno de Lula, na visão do ex-candidato à Presidência, reorganiza o polo que se opõe a Bolsonaro. “Lula é um agente organizador de um paradigma. Isso não significa que o Lula vai ganhar. Significa que as pessoas vão estar familiarizadas com a discussão que interessa ao país.”
Apesar de críticas que ressaltam sua incapacidade de aglutinar parte da esquerda após 2018, o ex-prefeito entende ter cumprido o seu papel. Menciona a criação de um canal de YouTube, para debates com potenciais aliados, como um grande feito. Entre as lideranças petistas que emergem, cita enfaticamente o governador do Ceará, Camilo Santana, além do governador da Bahia, Rui Costa, e do ex-governador Jaques Wagner.
Haddad elogia o caminho de volta de Marta Suplicy ao campo progressista e diz ser testemunha do apreço dela por Lula, e vice-versa. Admite que Marta seria um grande nome para a prefeitura, mas não opina sobre o retorno dela ao PT. Enfatiza, apenas, que o PT terá nome próprio em 2020.
O governo Bolsonaro, na opinião de Haddad, segue como “uma coalizão de minorias apaixonadas”. Na visão do petista, o ministro da Economia, Paulo Guedes, representa uma visão liberal defasada, da década de 1970 ou 1980, e não tem projeto de desenvolvimento para o Brasil. Ele admite, no entanto, que a esquerda também não. Pode até haver algum crescimento econômico de agora em diante, reconhece, mas essa melhora não vai bater à prota da casa do trabalhador.
Ciro Gomes e João Doria, na opinião de Haddad, padecem de uma crise de identidade, porque não conseguirão ocupar o vácuo do centro. “O problema desse pessoal de centro sempre foi o voto, o povo.” Ele sinaliza crer que a polarização direita-esquerda ainda será o mote de 2022.
O fantasma do parlamentarismo, sustenta, continua a rondar o país. “Tem muita gente tentando fazer dessa terceira via um atalho para o parlamentarismo sem plebiscito.” A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Há um ano o senhor previu que o governo Bolsonaro teria três núcleos: o político (com Sergio Moro e militares), o liberal (com Paulo Guedes) e o fundamentalista. A tutela militar não se confirmou e vários deixaram ministérios. Como vê o cenário hoje?
Fernando Haddad: O governo Bolsonaro é uma coalizão de minorias apaixonadas, que se somam, com intersecções. Há pesquisas falando que 17% a 20% dos brasileiros são a favor de uma ditadura no Brasil. Isso dialoga com parte de um sentimento popular que acha que a solução é a linha dura. Existe uma matriz no Brasil hoje cada vez mais teocrática, que cultiva valores fundamentalistas, de intolerância em relação ao diferente. O ultraneoliberalismo do Guedes está a todo vapor, o desmonte das políticas sociais, a taxação da pobreza.
Valor: Esse descolamento de parte dos militares seria pontual?
Haddad: É pontual. Bolsonaro não admite, em nenhuma medida, vozes dissonantes em seu governo. Os militares que saíram foi porque não estavam 100% alinhados com essa agenda tripartite: antidemocrática, antiestatal e fundamentalista. Ele vai dialogando com essas minorias e é por isso que o patamar de aprovação tem se mantido na casa de 25% a 30%.
Valor: Essa matriz teocrática seria de qual percentual, tamanho?
Haddad: O problema não é se for 20% ou 30%. Se for 20% é muito. E ela se soma a quem não cultiva a democracia como valor, que se soma a outros 20% que acham que o Estado tem que desaparecer da vida econômica social do país. Você está diante de um fenômeno novo que precisa ser enfrentado em várias searas. E nada garante que o baixo crescimento que vamos ter nos próximos anos vai chegar na casa do trabalhador. Provavelmente não. Então você pode até ter algum crescimento, depois de anos de represamento. E neste momento a gente não sabe qual vai ser a reação da sociedade quando ela perceber que o bem-estar não chegou.
Valor: E como é que a centro-esquerda se organiza?
Haddad: Vão se organizando núcleos de resistências a iniciativas do governo. As pessoas vão percebendo que o programa ultraneoliberal tem um custo para o trabalhador. Os serviços públicos vão se deteriorar. Vai se criando consciência política de que essa agenda é regressiva, sob vários aspectos.
Valor: Após a derrota de 2018 havia uma expectativa de que o senhor aglutinaria forças de centro-esquerda. Acha que exerceu esse papel? Obteve resultados?
Haddad: Acredito que tenha contribuído para estreitar os laços, para criar essa sensação de que pertencemos, neste momento, a um campo que tem a responsabilidade de dialogar e não necessariamente estar junto no primeiro turno, mas oferecer uma alternativa ao que está acontecendo no país, que é muito grave. Tem coisas que vêm sendo desmontadas que vai dar muito trabalho remontar. Então essa responsabilidade eu acho que nós temos, e Psol, PCdoB, PSB. Estamos mais próximos hoje do que já estivemos.
Valor: Esse governo produz polêmicas por si mesmo, o presidente até deixou o próprio partido. A oposição deixa de ocupar a linha de frente, é negligente, pouco atuante?
Haddad: O governo ocupa o espaço da oposição fazendo as trapalhadas que faz. É uma contradição interna permanente dentro do governo. Todo mês alguém sai da base do bolsonarismo. Nós tivemos muitos pontos altos. Em maio tivemos um grande movimento importante pela educação, que teve importantes resultados, inclusive orçamentários. Do ponto de vista ambiental, chamamos a atenção do mundo para o que estava acontecendo no Brasil e isso acabou tendo repercussão. Hoje existe um consenso em setores expressivos da sociedade de que como está não dá para ficar. Há ministros na corda bamba de novo. Perguntaram para Bolsonaro sobre as queimadas na Amazônia e ele manda perguntar para o [Ricardo] Salles; perguntaram da educação e ele diz que por enquanto o ministro fica; perguntaram do dólar a R$ 4,20 e ele diz: vai perguntar para o presidente do Banco Central. Bolsonaro, à maneira dele, vai se livrando dos problemas e deixando os aliados na estrada. É possível manter, por quatro anos, essa lógica de jogar tudo nas costas dos colaboradores ou dos governos anteriores? Já não está colando tanto.
Valor: Em relação às reformas que o atual governo diz que pretende conduzir, o senhor vê rumos corretos?
Haddad: Até aqui, o governo Bolsonaro concluiu a agenda Temer. O que se concluiu foi: teto de gastos, reforma trabalhista, com consequente precarização do mundo do trabalho e a Previdência. Isso estava já contratado por ocasião do impeachment sem crime de responsabilidade. O governo Bolsonaro, do ponto de vista econômico, não disse a que veio até agora. A não ser por essas maldades anunciadas e encaminhadas ao Congresso, como taxação do seguro-desemprego, esse tipo de medidas micro que não tem impacto macroeconômico nenhum. Acredito que o [Paulo] Guedes não tenha um projeto na cabeça, a não ser uma cartilha ultraliberal que ele tenta seguir e que é alguma coisa dos anos 70, dos anos 80, que está a pelo menos 40 anos defasada. Não vejo na equipe econômica formuladores de políticas públicas. Não enxergo um projeto de nação.
Valor: Em relação ao que está ocorrendo no Chile, reflexo da desigualdade social naquele país, o senhor vê paralelos com o Brasil? Falo em relação à desigualdade social, e não sobre manifestações nas ruas.
Haddad: O que aconteceu depois de 2008 é muito grave na economia global. Houve mudança de paradigma, crise severa do neoliberalismo. A desregulamentação feita, sobretudo das finanças globais, deu tão errado que as pessoas estão tentando consertar a partir de uma nova perspectiva, ainda não concretizada. O que isso representou para a América Latina? Instabilidade. E aí não é instabilidade da esquerda ou da direita, mas do modelo latino-americano de crescimento, que vinha acoplado ao crescimento asiático, sobretudo chinês. É um continente à procura de um modelo. O neoliberalismo vai apresentar uma solução para essa crise do modelo? Do meu ponto de vista não. Devíamos procurar um novo modelo de desenvolvimento mais integrado, mais ambicioso do que o liberalismo é.
Valor: Mas os governos de centro-esquerda da América Latina também governaram dentro deste modelo. Não houve nenhuma tentativa de mudança de paradigma.
Haddad: Sim. Em parte é verdade. Fizeram muito bem em distribuir a bonança, criaram um mercado consumidor muito maior, tiraram muita gente da miséria, ou seja, catapultaram o crescimento de maneira mais inclusiva. Mas o que se notou com a crise financeira internacional é que isso é pouco para as necessidades da região.
Valor: Depois que o ex-presidente Lula deixou a prisão, abriram-se duas perspectivas: ou ele fortalece o PT e a hegemonia do PT na esquerda ou caminha para uma vertente mais aglutinadora e diálogo mais amplo. Em qual das duas o senhor, que está muito próximo dele, aposta?
Haddad: Lula tem quase cinco décadas de vida pública. Desde 1989 ele é o político mais importante do Brasil. Ele está colocando esses anos de vida pública nacional a serviço de um projeto. Quando falam em polarização, eu vejo com bons olhos no seguinte sentido: ele está criando um contraponto. As pessoas precisam que os paradigmas estejam mais ou menos organizados para se posicionar. E o Lula é um agente organizador de um paradigma. A figura dele organiza um polo e permite às pessoas discernirem, num momento chave, o que está em jogo e tomar uma posição mais consciente sobre isso. Isso não significa que o Lula vai ganhar. Significa que as pessoas vão estar familiarizadas com a discussão que interessa ao país. Ele ajuda a organizar o debate público. É bom para a democracia ter mais de um polo.
Valor: Mas qual é a disposição objetiva de aglutinação?
Haddad: Lula não vai colocar o fígado dele acima do interesse que visa na política, acima de fazer a política que ele entende que é a melhor para o país. Ele é o líder do PT, a maior figura do PT, o maior político vivo, então vai tentar fortalecer o partido dele, como toda liderança política faz, mas sem perder de vista que muitas vezes partidos aliados estão em melhor posição em uma ou outra situação e merecem, no dia D, quando se definir as candidaturas, atenção para que a gente saia melhor do processo de 2020 e sobretudo de 2022.
Valor: Há indagações jurídicas sobre a impossibilidade de Lula de ser candidato. O PT vai usar o mesmo figurino e o senhor será o candidato aos 48min do segundo tempo?
Haddad: Lula tem uma questão com o julgamento dele. Ele foi retirado do processo eleitoral de 2018 artificialmente. Não foi uma coisa razoável o que aconteceu. E vai ser julgado, em 2020, talvez o mais importante julgamento para a democracia brasileira, da suspeição do juiz Sergio Moro. Tenho esperança de que esse habeas corpus seja julgado com seriedade. Nesse caso, Lula estaria com os direitos políticos recuperados.
Valor: Mas esse HC se refere ao caso do triplex do Guarujá. O ex-presidente é réu em nove processos.
Haddad: Eu não vou diminuir o desafio. Eu não imaginava que fosse ser o candidato ano passado. Lutamos até os 47 minutos do segundo tempo para o Lula ser. Mas fico feliz de ver que o Lula avaliou que o nosso desempenho eleitoral em 2018 foi surpreendentemente bom. Era um desafio enorme em 20 dias. Foi uma demonstração de que nosso projeto é forte no imaginário popular.
Valor: O senhor se vê como possível candidato em 2022, considerando a interdição jurídica de Lula?
Haddad: Estamos a três anos da eleição. Devemos aproveitar bem esse tempo, 2020 e 2021, para estudar muito sobre o que nós vamos apresentar em 2022. Ou a gente apresenta uma coisa muito ousada, e ousada não significa ruptura, ou a América Latina vai ter muita dificuldade em projetar um futuro de desenvolvimento inclusivo para as nossas populações. Para entrar no jogo tem que entrar com projeto sólido e consistente.
Valor: O senhor não entendeu esse chamamento do Lula para que viaje ao lado dele como a possibilidade de o senhor ser o candidato de novo?
Haddad: Tive um bom desempenho eleitoral. É inegável isso. Na política isso não passa despercebido. Sou um ativo do PT, mas não sou o único. Me reconheço como tal, estou à disposição deste campo político, mas há outras personalidades emergindo.
Valor: Fora do PT, inclusive?
Haddad: Temos uma safra boa de governadores do Nordeste, temos o ex-governador Jaques Wagner, o governador Rui Costa (Bahia), o governador Camilo Santana (Ceará). O Camilo é o maior governador da história do Ceará. A agenda de segurança do Camilo é exemplo para o Brasil hoje. Agora, a maior personalidade política do país é o Lula. O tempo vai passando, o lula está com 74 anos, é bom que novas lideranças emerjam.
Valor: O que é esse projeto de transformar a Fundação Perseu Abramo num ‘think tank’?
Haddad: Como é que nós vamos fazer com o emprego? A quarta revolução tecnológica está aí. O mundo do trabalho vai virar o quê? Ou vamos virar um laboratório de formulação, ou vamos para uma eleição amadoristicamente. E aí podemos ter governo bom? Podemos, mas não vai ser o governo que a população quer. Se a gente quiser ousar, precisamos começar a formular já. Eu me integraria a um time que estivesse disposto a pensar esses desafios: crise do trabalho, crise ecológica, aumento da intolerância. Como vamos enfrentar isso em escala global com projetos que mobilizem as pessoas, engajem as pessoas, mas que representem soluções concretas? O povo não vive de sonhos.
Valor: Ciro Gomes adotou uma postura explícita de confronto com Lula e o PT. Ele pode se desgarrar da esquerda e ser opção ao centro?
Haddad: Espero de coração que ele supere esse estado de espírito. Faz mais mal para ele do que para nós. Não vai engrandecê-lo e nem projetá-lo. Ele buscou o apoio do Centrão em 2018. Esse grupo migrou para o Alckmin. Acho legítimo Ciro fazer o movimento que bem entender. Ele e Doria estão na mesma situação: vivem uma crise de identidade. Quem está de fora não consegue localizá-los no espectro político. O Bolsodoria elegeu o Doria. Não foi Dorianaro. Da mesma maneira o Ciro. Não consigo enxergar a contribuição deles para o debate político do ponto de vista de situar o eleitor. Para quem tem crise de identidade, sobra desaforo. Não sabemos mais quem é essa persona do ponto de vista político.
Valor: Alguém que pode ocupar o polo do centro? Luciano Huck?
Haddad: Eu não vejo. O Brasil funcionou com dois polos de 1994 pra cá, com o PSDB e o PT. O PSDB foi implodido pela Lava-Jato. O que entrou no lugar do PSDB foi o Bolsonaro, a extrema-direita. Hoje o que está organizado no Brasil é isso. Tem perspectiva de um terceiro? Sempre vai haver essa tentativa. Houve no passado, com Eduardo Campos, com a Marina, só que ninguém teve fôlego. Tem muita gente tentando fazer dessa terceira via um atalho para o parlamentarismo sem plebiscito, que eu acho que é o sonho do Centrão. Porque aí o Congresso vai mandar sem intermediário. A escolha plebiscitária do chefe de governo vai ficar escanteada em favor da escolha parlamentar do chefe de governo. Esse é um fantasma que a todo momento reaparece por obra do Centrão. O problema desse pessoal de centro é o voto, o povo.
Valor: O senhor considera disputar a Prefeitura de São Paulo?
Haddad: Não, eu não considero. Não vou disputar. Preciso me organizar para contribuir com o meu melhor. Nesse momento não vejo condições de contribuir. Eu não tinha representatividade em 2012. O PT tem condição de impulsionar uma candidatura nova. Acho que o PT vai ter candidato próprio porque o partido já governou três vezes a cidade.
Valor: E a reaproximação com a Marta Suplicy?
Haddad: Sou testemunha do apreço da Marta pelo Lula e vice-versa. Marta deu a cara à tapa para patrocinar o Volta Lula em 2014. Ela era ministra da Dilma e isso criou para ela uma situação muito difícil de contornar. O fato de ela estar repensando e revendo essa posição, depois de 30 anos de PT, vejo com bons olhos. É importante uma pessoa como ela dar um depoimento de que gostaria de ver o Lula candidato em 2022 e que ela estaria neste projeto. É um gesto grande. Política precisa de gestos grandes. Ela é um nome na cidade, foi uma grande prefeita. Não sei se retornar ao PT. Ela está se reaproximando do campo ao qual sempre pertenceu.
*Malu Delgado é jornalista.