Vinícius Campos: A juventude em regimes autoritários: apropriação do corpo e da imagem
Olá meus caros, estou aqui mais uma vez escrevendo para vocês. Como de praxe, aviso que não sou nenhum doutor ou acadêmico com títulos relevantes. Sou somente um juvenil que de vez em quando escreve sobre fatos que me interessam. Desta vez irei discutir sobre um vídeo recente, feito no dia 10 de julho no interior de um avião. A criança presente na foto possui 7 anos, dá vida a um policial mirim e já tem cerca de 10 mil seguidores em sua conta no Instagram. No vídeo, apoiado sobre duas poltronas, ele grita em um tom bastante incomum para a idade. Como quem da ordem e impõe disciplinar, comum no exército, a frase: “aqui é Bolsonaro ou não é?”. Ironicamente, o pai da criança, ao incentivar o comportamento do filho, dando a ele desde fardas da polícia até réplicas de armas, comete delitos que são despercebidos pela atenção que a criança recebe. Além das questões legais, que tentarei expor com o máximo de simplicidade possível, essa criança me despertou certas comparações com imagens usadas pelo nazismo, pelo fascismo e pela URSS stalinista em suas propagandas regimentais. O que representa essa criança fardada?
O Estatuto do desarmamento determina que a produção, comercialização e importação de réplicas de armas é proibida; salve casos específicos, em geral para uso de colecionadores tendo registro no exército ou para fins de instrução e ensinamento, e seu uso é restrito. E imagino que o fato de o pai da criança possuir licença para ter réplicas de armas em casa não significa que uma criança de sete anos de idade possa porta-las. Inclusive, dentro da câmara dos deputados, em um episódio anterior. Além de todo o problema com as réplicas das armas, existem problemas legais relacionados ao Estatuto da Criança e do Adolescente, (Art. 17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Art. 18 É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.) Essa criança é um garoto-propaganda de uma ideologia, de forma tão escrachada que lembra fotos das crianças-soldado treinadas pelo Estado Islâmico.
Porém, o foco principal do texto está um pouco além do caráter legal do comportamento do pai. Ao invés de focar estritamente em discutir quem é a criança, quem é o pai, entre outros tópicos mais materiais, quero tentar chegar em algo que é essencial: a questão representativa dessa criança. Para conseguir me embasar, irei voltar em períodos específicos quando o Estado impunha um padrão comportamental para a juventude, encaixando-a como a geração da prosperidade. Um período no qual era imposto aos jovens depositarem seus sonhos nas mudanças da sociedade e do mundo (uma mudança, é claro, baseada nos ensinamentos que estavam sendo impostos).
Em geral, a imagem da juventude foi algo amplamente explorado por regimes autoritários. Do Brasil governado por Getúlio Vargas, passando pela Alemanha nazista e pela Itália fascista, até a União Soviética Stalinista, os esforços em moldar uma padronização infantil através da propaganda, definitivamente, não possuíam limites financeiros. Uma arma de controle ideológico extremamente eficaz, pois criar uma geração sob influência de determinada ideologia garante uma absorção praticamente sem contestação. Afinal de contas, é difícil pensar em outra concepção de mundo se alguém ouve que judeus devem morrer e que a raça ariana é superior a todas as outras desde que essa pessoa tomou consciência da própria existência. Não é só difícil, mas praticamente impossível.
Hitler foi um dos ditadores mais sanguinários da história. Entretanto, é praticamente indiscutível que ele e sua equipe eram gênios da propaganda. Como disse em um texto anterior, quando citei os traços nazistas no governo Bolsonaro, a publicidade nazista chefiada por Goebells era algo praticamente hipnótica; era o contraste do sonho utópico e a distopia da guerra. Agressiva, mas extremamente contagiante, ainda mais em um contexto no qual os alemães se encontravam, devido a todos os problemas econômicos gerados pela primeira guerra mundial e seu desejo de revanche, em especial com a França e com o Reino Unido. Hitler direcionou o ódio da população para pontos específicos da sociedade, de uma maneira em que ela encarasse o judaísmo, os ciganos, os deficientes e os doentes como um obstáculo para atingirem algo maior. Porém, quando se trata do comportamento imposto à criança, há uma pequena diferença: para que haja ódio e revanchismo, primeiro deve haver uma premissa que é ntender seu papel dentro da sociedade, dentro do Estado, e o peso do símbolo carregado em seu uniforme. As crianças no regime nazistas não são, mas sim virão à ser. Virão a ser a continuidade do regime; logo, a imposição ideológica está muito mais focada em um primeiro momento em criar uma representatividade e uma pseudo-identidade, ao invés de estabelecer a divisão entre amigo X inimigo. Para que a criança conseguisse definir quem eram seus inimigos e quem eram seus aliados, com base na ótica do regime nazista, ela primeiramente deveria definir a si mesma, chegando ao ponto máximo do nazismo. Uma peça isolada fora de um todo não é nada, rejeitando grande parte de sua individualidade em prol da formação de um padrão social e, consequentemente, oferecendo seu corpo como extensão do Estado na guerra contra os inimigos, pois caso o Estado seja derrotado, ele também será derrotado.
A Itália Fascista possuía certas diferenças em relação a Alemanha Nazista. Principalmente em relação a concepção teórica do conjunto a que chamamos de Estado. Mas isso não é algo que vale a pena debater neste texto, pois analisar de perto as diferenças entre o fascismo e o nazismo é um tema complicado. Porém, essas diferenças não eram tão impactantes a ponto de impedir uma aliança entre os países durante a Segunda Guerra Mundial. Mussoulini, também, possuía uma concepção sobre a juventude praticamente idêntica à de Hitler. A propaganda ufanista italiana muitas vezes usava da poesia, da música, e de gestos públicos dos líderes políticos para moldar o seu ideal de juventude. Enalteciam a juventude e, através da educação militar introduzida no final da unificação Italiana, o governo criou a formação do chamado cidadão-soldado. As aulas de educação física eram usadas para introduzir preceitos de táticas militares. A mídia e o cinema mostravam à criança quem idolatrar, como se portar na sociedade fascista, para aos poucos molda-la como um soldado preparado para ir à guerra. Ou uma mulher “bela, recatada e do lar” que desejava ter muitos filhos para ajudar a manter o exército nacional. É importante notar que essa concepção também rejeita a ideia da individualidade, pois isso seria destoante com a sociedade dos sonhos. A individualidade da criança era aos poucos arrancada e suprimida, cedendo lugar ao ideal de viver, lutar e morrer pelo Estado, ou no caso, pela “nação”.
No caso da União Soviética, temos uma análise um pouco diferente. Primeiro, porque o socialismo virou um inimigo mundial antes mesmo do nazismo. Segundo, porque existiram várias correntes ideológicas dentro da URSS, diferentemente do nazismo comandado por Hitler e do fascismo comandado por Mussoulini. No socialismo, haviam três correntes ideológicas: O socialismo de Lennin, o socialismo de Trotsky, e o socialismo de Stalin; cada um com suas peculiaridades e diferenças. O curioso da propaganda soviética era que dentre todos os regimes totalitários, ela era a mais “plural”, digamos assim. A URSS não projetava uma ideia de homem patriarca que luta na guerra e mulher dona de casa e reprodutora. Em especial, no caso da mulher, ela era marcada não somente como “bela, recatada e do lar”, mas como alguém que também poderia pegar em armas, alguém que possuía determinação e resiliência.
Ela não era frágil a ponto de precisar ser protegida, conseguia lutar e cuidar de si. Um ser que poderia competir em esportes e tão importante quanto o homem dentro da revolução. A propaganda soviética não diferenciava de forma tão explícita o papel do homem e da mulher. Ambos eram fundamentais para o sucesso da revolução, apesar de haver prêmios como “mãe heroína” para a mulher que tivesse mais de dez filhos, dentre outras excentricidades. A criança soviética era bombardeada de forma indireta pela propaganda, pois apesar de não ser diretamente retratada em cartazes e filmes, ela encarava o padrão que deveria possuir quando crescesse. Sua formação seria mais passiva e evolutiva, diferentemente da imposição ríspida do nazifascismo. Isso faz sentido considerando o conceito de alienação marxista, pois esse considera que o proletário, inserido dentro do sistema capitalista, deveria primeiro passar por um processo de “autoconhecimento” para conseguir romper com a ideologia burguesa. A força bruta de nada adiantaria para romper um laço ideológico tão forte oriundo do regime capitalista. Era preciso tempo e dedicação para a construção de um novo homem.
Em hipótese alguma eu concordo com crianças sendo usadas por movimentos políticos. Não concordo com crianças virando propaganda do MST, nem com crianças que seguraram cartazes em 2016 pedindo o Impeachment da Dilma para poderem viajar para a Disney. Imagino que crianças não devem sequer entender de fato o que é o MST, ou o que significa um processo de impeachment. Existe um limiar que para uns é claro e para outros não é, sobre incentivar uma criança a estudar/pesquisar acerca de uma causa, e torna-la uma propaganda política. Uma criança tem todo o direito de se fantasiar de policial, de médico, de bombeiro ou de mecânico. No entanto, o que o pai dessa criança faz ao explorar sua imagem é patético. Réplicas de armas não são objetos para crianças, algemas não são coisa de criança, farda não é coisa de criança, disciplina militar não é coisa de criança, e ser conhecido no país como um menino que anda fantasiado de policial do BOPE, enquanto carrega simulacros de armas gritando que “ama seu presidente”, é algo que foge da concepção de qualquer sociedade minimamente normal sobre infância. Deputados que recebem essa criança em seus escritórios e tiram fotos com ela para postarem na internet são patéticos. Sinceramente, se a extrema-direita quer criticar a esquerda com discursos fantasiosos e absurdos, como “distribuir kit gay nas escolas e influenciar as crianças a serem homossexuais”, ou então perseguir o professor de história/filosofia/sociologia/geografia que é supostamente um comunista doutrinador, antes de tudo ela ao menos deveria limpar a própria casa.